ASSOMBRAÇÃO
ANIMAL
Sob o sol e sob chuva,
labutavam no sertão
Severino e sua família,
todos com os pés no chão.
Na jornada madrugavam
para garantirem o pão.
Acordavam com o galo
que rouco cocoricava.
(Apesar de ser tão magro,
no terreiro ainda mandava.)
Bebiam café tão ralo
que até a cor assustava.
Severino e Antônia,
junto com os seis
meninos
- Tião, José, Damião
João, Mané, Zé
Timbrino -
iam para a plantação
entoando sacro hino.
Léguas e léguas andavam,
chagas abertas no
chão.
Espinhavam-lhes os
cactos,
que saltavam da
aflição.
E rezando “Ave Maria”,
rogavam por redenção.
A poeira do caminho,
peneirada em cada
rosto,
chamava sombras da
noite,
que grudavam feito
encosto.
- Bom Jesus retire o
cálice
que nos enche de
desgosto!
Avistaram Nicolau
vendo o jegue lá no
fosso,
cercado por urubus,
garantindo o almoço.
Só deixaram, no local,
a carcaça. Puro osso!
Essa triste paisagem
invadiu a região.
Sobre o barro
afogueado,
tem-se uma vida de
cão,
mas há gente que ali
teima,
labutando em comunhão.
Severino e família
sobreviviam de caça.
Camaleão e preá,
buscavam com muita
raça.
Mas a água no açude,
somente em dias de
graça.
Assim, passavam as
manhãs.
Chegando a hora do
almoço,
de joelhos, mãos
unidas,
rezavam o padre nosso.
Na marmita rapadura,
e farelo com sal
grosso.
Novamente pra labuta
com o sol a castigar.
Mais buracos
cutucavam,
tentando algo
encontrar.
E nutriam aquele solo
com o sangue a jorrar.
Lua cheia despontou,
finalizando a jornada.
Outras léguas pro retorno,
e a barriga esvaziada.
Os ombros muito
envergados
e a cabeça arriada.
Era noite sem
estrelas,
uma coisa esquisita...
Na caatinga o silêncio
diz que algo
premedita.
E logo, um uivo
medonho,
de coisa muito maldita.
Damião fechou os olhos,
Zé Timbrino arregalou
e João tentou correr,
mas o irmão não
deixou.
José já ficou cismado
quando Tião se
agachou.
Severino, cabra macho,
pôs-se logo a procurar
pelo tal desaforado
que foi lá pra
assombrar.
Antônia pegou os
filhos,
tentando tudo acalmar.
O pai, com muito
cuidado,
acompanhou o assobio.
O som alto, muito
fino,
provocava arrepio.
Um bicho pulou de um
galho
pr'outro que estava
vazio.
Todos os meninos tremeram,
olhando o bicho de
esguelho.
Criatura esquisita
mastigava escaravelho.
Tinha orelhas pontiagudas,
e um focinho vermelho.
Frente a frente à
criatura,
Severino não medrou.
Puxou logo a peixeira,
com o animal se
atracou.
Rolaram de um canto a
outro,
a briga logo
esquentou.
Quando a coisa abria a
boca,
o chão dava de tremer.
Pelas ventas muito
fogo,
algo de surpreender.
Com as garras afiadas
queria tudo abater.
Severino deu um salto
e montou logo na fera.
Segurando no pescoço,
foi partindo para a
vera.
A família ajudou.
Lá, a união impera!
Era tanta da fumaça
que a noite se
assustou,
virando-se do avesso,
logo a Lua enrolou.
Mas coitadas das
estrelas,
uma a uma despencou.
Foi tamanha a confusão
que o bicho
desmoronou.
Ser estranho como
aquele,
ninguém nunca
encontrou.
Depois de passado o
susto,
uma luz ali chegou.
Antônia pôs-se a pedir
que agissem com muita
pressa.
Severino alto pensava,
fervilhando a cabeça.
Com um galho,
desenhava,
por estranho que
pareça.
Um plano logo surgiu.
Precisavam executar.
Cada um pegou sua faca
e uma pedra pra afiar,
com os fios
diferentes,
para furar e cortar.
Montaram todos na fera
antes de ela acordar.
Severino, com um
golpe,
atingiu a jugular,
e com a ponta do
facão,
fez muito sangue
jorrar.
Com o animal abatido,
parte a parte
retiraram.
Orelha, focinho, pés,
nas tripas tudo
ensacaram.
Membro a membro, órgão
a órgão,
e a fera
esquartejaram.
Cada um pegou seu
fardo,
pra arrastar até em
casa.
Apesar de muito peso,
a esperança criou asa.
No caminho cantoria
e o coração feito
brasa.
Ao chegaram ao vilarejo,
muita gente se juntou.
Todos queriam saber
o que por lá se
passou.
E ao contarem a
história,
todo o povo se
assustou.
Trabalhando em mutirão,
toda a carne foi
cortada,
salgando ambos os
lados
e afastando a
cachorrada.
E à sombra, num varal,
peça a peça pendurada.
Fizeram muita linguiça;
roupas com couro
curtido.
Como os dentes eram
grandes,
puderam ser esculpidos.
Muitos objetos d’artes
foram também
produzidos.
Essa fera alimentou
o povo da região.
Tempos melhores
chegaram,
ali naquele torrão.
Sete anos de fartura,
às custas da assombração.
Sertanejo é cabra macho,
mata a cobra e mostra
o pau.
Dia-a-dia frente à
morte,
luta contra todo mal.
Assombração é
pintinho,
quando a fome é
animal.
Essa história é
verdadeira!
As provas encontrará
nas bandas de Canindé,
no sertão do Ceará.
E dizem que muita fera
com medo foi pro Pará.
Luzia M. Cardoso - sob heterônimo Tonha dos Cafundó
A triste realidade do sertão não muda. O tempo passa e o sofrimento persiste. Você a retratou de forma gostosa para se ler. E pensei que nem os ossos iam sobrar (rss).
ResponderExcluirBjs.