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Aqui trataremos de tudo aquilo que nos emociona.

A vida, em todas as suas formas e manifestações, nos leva a fortes emoções.

Espero poder traduzir, em versos e rimas, as expressões da vida com as quais eu tiver contato.



Luzia M.Cardoso
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terça-feira, 13 de setembro de 2011

Assombração Animal



ASSOMBRAÇÃO ANIMAL

 

Sob o sol e sob chuva,

labutavam no sertão

Severino e sua família,

todos com os pés no chão.

Na jornada madrugavam

para garantirem o pão.

 

Acordavam com o galo

que rouco cocoricava.

(Apesar de ser tão magro,

no terreiro ainda mandava.)

Bebiam café tão ralo

que até a cor assustava.

 

Severino e Antônia,

junto com os seis meninos

- Tião, José, Damião

João, Mané, Zé Timbrino -

iam para a plantação

entoando sacro hino.

 

Léguas e léguas andavam,

chagas abertas no chão.

Espinhavam-lhes os cactos,

que saltavam da aflição.

E rezando “Ave Maria”,

rogavam por redenção.

 

A poeira do caminho,

peneirada em cada rosto,

chamava sombras da noite,

que grudavam feito encosto.

- Bom Jesus retire o cálice

que nos enche de desgosto!

 

Avistaram Nicolau

vendo o jegue lá no fosso,

cercado por urubus,

garantindo o almoço.

Só deixaram, no local,

a carcaça. Puro osso!

 

 Essa triste paisagem

invadiu a região.

Sobre o barro afogueado,

tem-se uma vida de cão,

mas há gente que ali teima,

labutando em comunhão.

 

Severino e família

sobreviviam de caça.

Camaleão e preá,

buscavam com muita raça.

Mas a água no açude,

somente em dias de graça.

 

Assim, passavam as manhãs.

Chegando a hora do almoço,

de joelhos, mãos unidas,

rezavam o padre nosso.

Na marmita rapadura,

e farelo com sal grosso.

 

 Novamente pra labuta

com o sol a castigar.

Mais buracos cutucavam,

tentando algo encontrar.

E nutriam aquele solo

com o sangue a jorrar.

 

Lua cheia despontou,

finalizando a jornada.

Outras léguas pro retorno,

e a barriga esvaziada.

Os ombros muito envergados

e a cabeça arriada.

 

Era noite sem estrelas,

uma coisa esquisita...

Na caatinga o silêncio

diz que algo premedita.

E logo, um uivo medonho,

de coisa muito  maldita.

 

 Damião fechou os olhos,

Zé Timbrino arregalou

e João tentou correr,

mas o irmão não deixou.

José já ficou cismado

quando Tião se agachou.

 

Severino, cabra macho,

pôs-se logo a procurar

pelo tal desaforado

que foi lá pra assombrar.

Antônia pegou os filhos,

tentando tudo acalmar.

 

O pai, com muito cuidado,

acompanhou o assobio.

O som alto, muito fino,

provocava arrepio.

Um bicho pulou de um galho

pr'outro que estava vazio.

 

 Todos os meninos tremeram,

olhando o bicho de esguelho.

Criatura esquisita

mastigava escaravelho.

Tinha orelhas pontiagudas,

e um focinho vermelho.

 

Frente a frente à criatura,

Severino não medrou.

Puxou logo a peixeira,

com o animal se atracou.

Rolaram de um canto a outro,

a briga logo esquentou.

 

Quando a coisa abria a boca,

o chão dava de tremer.

Pelas ventas muito fogo,

algo de surpreender.

Com as garras afiadas

queria tudo abater.

 

Severino deu um salto

e montou logo na fera.

Segurando no pescoço,

foi partindo para a vera.

A família ajudou.

Lá, a união impera!

 

Era tanta da fumaça

que a noite se assustou,

virando-se do avesso,

logo a Lua enrolou.

Mas coitadas das estrelas,

uma a uma despencou.

 

Foi tamanha a confusão

que o bicho desmoronou.

Ser estranho como aquele,

ninguém nunca encontrou.

Depois de passado o susto,

uma luz ali chegou.

 

Antônia pôs-se a pedir

que agissem com muita pressa.

Severino alto pensava,

fervilhando a cabeça.

Com um galho, desenhava,

por estranho que pareça.

 

Um plano logo surgiu.

Precisavam executar.

Cada um pegou sua faca

e uma pedra pra afiar,

com os fios diferentes,

para furar e cortar.

 

Montaram todos na fera

antes de ela acordar.

Severino, com um golpe,

atingiu a jugular,

e com a ponta do facão,

fez muito sangue jorrar.

 

 Com o animal abatido,

parte a parte retiraram.

Orelha, focinho, pés,

nas tripas tudo ensacaram.

Membro a membro, órgão a órgão,

e a fera esquartejaram.

 

Cada um pegou seu fardo,

pra arrastar até em casa.

Apesar de muito peso,

a esperança criou asa.

No caminho cantoria

e o coração feito brasa.

 

 Ao chegaram ao vilarejo,

muita gente se juntou.

Todos queriam saber

o que por lá se passou.

E ao contarem a história,

todo o povo se assustou.

 

 Trabalhando em mutirão,

toda a carne foi cortada,

salgando ambos os lados

e afastando a cachorrada.

E à sombra, num varal,

peça a peça pendurada.

 

Fizeram muita linguiça;

roupas com couro curtido.

Como os dentes eram grandes,

 puderam ser esculpidos.

Muitos objetos d’artes

foram também produzidos.

 

Essa fera alimentou

o povo da região.

Tempos melhores chegaram,

ali naquele torrão.

Sete anos de fartura,

às custas da assombração.

 

Sertanejo é cabra macho,

mata a cobra e mostra o pau.

Dia-a-dia frente à morte,

luta contra todo mal.

Assombração é pintinho,

quando a fome é animal.

 

Essa história é verdadeira!

As provas encontrará

nas bandas de Canindé,

no sertão do Ceará.

E dizem que muita fera

com medo foi pro Pará.


Luzia M. Cardoso - sob heterônimo Tonha dos Cafundó

 


Um comentário:

  1. A triste realidade do sertão não muda. O tempo passa e o sofrimento persiste. Você a retratou de forma gostosa para se ler. E pensei que nem os ossos iam sobrar (rss).
    Bjs.

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